Artigo: Mudanças na legislação de trânsito anunciadas pelo Presidente
Nestes primeiros meses de seu mandato, tem sido bastante comum o atual Presidente da República anunciar mudanças que pretende realizar na legislação de trânsito brasileira, a ponto até de algumas pessoas acharem que as propostas já estejam valendo ou em vias de que isto aconteça.
Na verdade, na maior parte dos casos, por mais que se trate de uma intenção do Chefe do Poder Executivo federal, as modificações dependem de alteração NA LEI e, por este motivo, precisam ser aprovadas pelo Congresso Nacional, com tramitação, em separado, em ambas as Casas Legislativas (Câmara dos Deputados e Senado), cabendo à Presidência tão somente o encaminhamento de Projeto(s) de Lei com as proposições que pretende implantar, o que leva um tempo considerável, podendo até mesmo superar o período de seu mandato.
Uma saída mais rápida seria a edição de Medida(s) Provisória(s), que possui prazo para ser apreciada pelo Congresso Nacional (sessenta dias, prorrogável por mais sessenta), mas, a rigor, se observarmos os temas que têm sido propalados nos anúncios presidenciais, verificaremos não comportarem alteração via MP, de vez que não atendem aos seus requisitos para expedição, quais sejam a relevância e a urgência, nos termos do artigo 62 da Constituição Federal.
Tal constatação jurídica, obviamente, não elimina a possibilidade real de que isto venha a ocorrer, o que não será pioneiro na alteração do Código de Trânsito Brasileiro, já modificado, anteriormente, por meio de Medidas Provisórias, nem sempre versando sobre assuntos relevantes e/ou urgentes, seja pelo assunto originário, seja pelos acréscimos ocorridos durante a tramitação legislativa – até o presente momento, exatamente 8 Leis, dentre as 35 Leis de alteração do CTB, originaram-se de Medida Provisória: Lei n. 11.705/08 (MP 415/08); Lei n. 12.058/09 (MP 462/09); Lei n. 12.249/10 (MP 472/09); Lei n. 12.865/13 (MP 615/13); Lei n. 12.998/14 (MP 632/14); Lei n. 13.097/15 (MP 656/14); Lei n. 13.154/15 (MP 673/15); e Lei n. 13.281/16 (MP 699/15).
Vejamos, a seguir, os seis principais tópicos que já foram alvo de declarações presidenciais, externando seu desejo de mudança, e alguns comentários para compreensão de cada tema, independentemente da conveniência e oportunidade de cada uma das propostas:
Aumento de pontuação de 20 para 40 pontos, para suspensão do direito de dirigir
O limite de cômputo, para a instauração de processo de suspensão do direito de dirigir, encontra-se no artigo 261, inciso I, do CTB, que é, como se sabe, uma Lei federal; portanto, somente o processo legislativo poderá trazer nova regra, não sendo modificável por decisão isolada do Presidente da República.
Para se ter uma ideia sobre a demora do processo legislativo, este assunto se encontra em tramitação no Senado, por meio do
PLC 75/18, aprovado na Câmara dos Deputados em junho de 2018 e atualmente sob relatoria do Senador Luiz do Carmo, na Comissão de Assuntos Econômicos, sendo sua origem exatamente em um PL do Poder Executivo enviado ao Congresso,
pasmem, em
AGOSTO DE 1999.
No Projeto original, de n. 1.428/99, pretendia-se alterar os artigos 230, 257 e 261, tendo, neste último, o aumento de 20 para 30 pontos para a suspensão do direito de dirigir. Na Exposição de motivos do Ministro da Justiça, enviada à casa legislativa, embora se inicie tratando das reivindicações dos transportadores rodoviários de cargas, encerra-se com a seguinte elucidação:
“Convém esclarecer que as modificações propostas não alçarão exclusivamente os condutores profissionais, mas sim todos aqueles que transitam pelas vias públicas. Com o novo sistema de contagem de pontos, a aplicação da pena de suspensão do direito de dirigir far-se-á de maneira mais uniforme e justa, consentânea com os objetivos da legislação de trânsito, sem que, com isso, se estabeleçam privilégios para categorias”.
Além da
demora no processo legislativo, as discussões parlamentares e substitutivos apresentados levam, muitas vezes, à completa
distorção do que foi inicialmente proposto: fato é que, diferentemente do que se pretendia, a redação final do PL, aprovada na Câmara dos Deputados (
1.428-D), aumenta a pontuação necessária para a suspensão do direito de dirigir, de acordo com a gravidade das infrações cometidas, e
exclusivamente para o condutor que
“exerce atividade remunerada em veículo, no exercício da profissão” – 25 pontos, se não constar mais de duas infrações gravíssimas, 30 pontos, se não constar mais de uma infração gravíssima, 35 pontos, se não constar nenhuma infração gravíssima, ou 40 pontos, se não constar nenhuma infração grave ou gravíssima.
Não só foi alterada a pretensão originária, como o Projeto de Lei passou a ser muito mais amplo do que se pretendia: em vez de apenas 3 artigos alterados do CTB, a redação substitutiva prevê modificações em 10 artigos e, em acréscimo, altera outras 12 Leis, passando a ter como ementa a instituição de normas para regulação do transporte rodoviário de cargas.
Interessante observar que, recentemente, o CTB foi alterado, neste quesito, justamente para dar maior rigor na imposição desta penalidade, elevando o tempo mínimo de suspensão para quem atinge os 20 pontos, de 1 mês para 6 meses, conforme Lei n. 13.281/16, o que significa que, de certa forma, aumentar a pontuação (para diminuir a quantidade de incidentes na penalidade) será uma decisão dissonante do que motivou, à época, o recrudescimento da lei.
Além disso, aqueles que exercem atividade remunerada com o veículo e que possuem CNH nas categorias ‘C’, ‘D’ ou ‘E’, a quem normalmente se atribui a intenção de elevação do total de pontos para suspensão, já têm, desde 2015 (com alteração em 2016), uma forma de se evitar a suspensão quando prestes a atingir 20 pontos em seu prontuário, bastando solicitar, ao órgão executivo estadual de trânsito, quando possuírem entre 14 e 19 pontos, a realização de Curso preventivo de reciclagem, nos termos dos §§ 5º a 7º do artigo 261 (incluídos pela Lei n. 13.154/15 e alterados pela Lei n. 13.281/16), com regulamentação da Resolução do Conselho Nacional de Trânsito n. 723/18. Com a realização do Curso preventivo, “zera-se a pontuação” e recomeça a contagem.
Aumento do período da validade da CNH, de 5 para 10 anos
Na vigência do Código Nacional de Trânsito anterior (Lei n. 5.108/66), a validade (do exame de aptidão física e mental) da CNH era um dos aspectos da regulamentação sobre a formação de condutores, ficando a cargo do Conselho Nacional de Trânsito a sua definição.
Desta forma, até 1989, a regulamentação existente determinava que a CNH deveria ser renovada, com a realização de novo ‘exame médico’, quando o condutor completasse 40 anos de idade, independente do momento em que obteve o seu documento de habilitação, o que foi alterado pela sistemática atual: renovação a cada cinco anos, para o público em geral, ou a cada três anos para condutores com mais de 65 anos de idade.
Tal regra foi modificada, em 1989, pela Resolução do Contran n. 734/89 (artigo 57), mas, desde 1997, passou a constar expressamente do CTB (artigo 147, § 2º), portanto, somente o processo legislativo poderá trazer nova regra, não sendo modificável por decisão isolada do Presidente da República.
Cancelamento de fiscalização por “lombadas eletrônicas”
A infração de trânsito por excesso de velocidade encontra-se prevista no artigo 218 do CTB, cuja redação traz, taxativamente, a necessidade de medição por instrumento ou equipamento hábil, cuja regulamentação encontra-se, hoje, na Resolução do Contran n. 396/11.
Na citada Resolução, encontramos, já em seu início, a classificação dos diferentes tipos de equipamento e suas definições, do que já podemos concluir que, ao se referir às “lombadas eletrônicas”, não se está tratando de toda a fiscalização eletrônica de velocidade, posto que “lombada eletrônica” é apenas um modelo de medidor de velocidade, assim definido: “medidor de velocidade, do tipo fixo, com dispositivo registrador de imagem, destinado a fiscalizar a redução pontual de velocidade em trechos considerados críticos, cujo limite é diferenciado do limite máximo regulamentado para a via ou trecho em um ponto específico indicado por meio de sinalização (placa R-19)”.
Logo, ao ouvirmos, do Presidente, que pretende acabar com as “lombadas eletrônicas”, a primeira dúvida que surge é se esta intenção se refere apenas ao medidor acima definido ou a toda e qualquer forma de fiscalização de velocidade.
Há que se considerar que a fiscalização de velocidade é uma das importantes áreas de atuação dos órgãos e entidades de trânsito e rodoviários, para a redução de mortes e lesões no trânsito, com recomendação de sua adoção, inclusive, pela Organização Mundial da Saúde, por se tratar de um dos fatores de risco à segurança viária.
Não acredito, por conseguinte, que a ideia seja extirpar a medição de velocidade de maneira irrestrita, mas, como apontado pelo Presidente, eliminar a distorção na escolha de locais e forma de fiscalização, a fim de evitar que se dê a impressão de providência meramente arrecadatória, para se tornar realmente ferramenta de incremento da segurança no trânsito.
Sendo esta a intenção, basta dar real e efetivo cumprimento às normas já existentes, na Resolução do Contran n. 396/11, quanto à escolha dos locais de fiscalização, implantação da sinalização de trânsito com o limite de velocidade, visibilidade do equipamento e, principalmente, necessidade de estudo técnico para instalação e monitoramento da eficácia dos medidores do tipo fixo (como é o caso das ‘lombadas eletrônicas’).
Neste caso, portanto, não há a necessidade de qualquer alteração legislativa (nem mesmo em atos administrativos infralegais), mas tão somente a cobrança dos órgãos competentes, para que se dê efetivo cumprimento à norma de trânsito em vigor.
Formação de condutores (simulador de direção, aulas noturnas, cursos EAD etc)
O artigo 141 do CTB estabelece que “o processo de habilitação, as normas relativas à aprendizagem para conduzir veículos automotores e elétricos e à autorização para conduzir ciclomotores serão regulamentados pelo CONTRAN”; destarte, a maior parte das regras constantes do processo atual de habilitação decorre tão somente de ato normativo do Contran, diante do que as intenções presidenciais, nesta seara, podem ser mais facilmente colocadas em prática.
É o caso, por exemplo, do simulador de direção veicular ou do conteúdo, forma e duração da formação teórico-técnica e de prática de direção; todavia, em relação às aulas noturnas, cabe ao Contran tão somente a fixação da carga horária mínima, posto que a obrigatoriedade de sua realização consta de texto legal – § 2º do artigo 158 do CTB, incluído pela Lei n. 12.217/10: “parte da aprendizagem será obrigatoriamente realizada durante a noite, cabendo ao CONTRAN fixar-lhe a carga horária mínima correspondente”.
Assim, para se excluir as aulas noturnas, necessária se faz a apresentação de PL ao Congresso; em relação a todo o restante do processo de formação de condutores, basta ao Contran regulamentar a matéria com as novas regras que se pretende, alterando e substituindo a atual Resolução n. 168/04 – aliás, no ano passado, houve uma grande reformulação, após uma série de audiências públicas, por meio da Resolução n. 726/18, a qual foi, porém, revogada dias depois de sua publicação, após repercussão negativa quanto a, especificamente, exigência de ensino teórico para a renovação da CNH (a revogação ocorreu, por “determinação do Ministro das Cidades”, mediante a Deliberação do Presidente do Contran n. 168/18, não tendo ocorrido, até o presente momento, edição de Resolução referendando a decisão isolada do Presidente do Conselho).
Revogação da placa veicular modelo MERCOSUL
Esta é, ademais, uma promessa de campanha do atual Presidente, que não vê com bons olhos a adoção de uma placa de identificação de modelo padronizado para os países integrantes do Mercado Comum do Sul.
Esta padronização surgiu com a edição da Resolução MERCOSUL n. 33/14, que pretendia não só criar um modelo único de placas, mas também “implementar um sistema de consultas sobre veículos do MERCOSUL para avançar na luta contra os delitos de roubo de veículos, tráfico de pessoas e narcotráfico, entre outros delitos transfronteiriços” (ainda inexistente).
O prazo para sua adoção, pelos países integrantes do Bloco, era de 01JAN16, o que pretendia ser seguido pelo Brasil, quando da edição da 1ª norma a respeito (Resolução n. 510/14), mas que, até hoje, ainda não se concretizou, sendo que, apesar de algumas Unidades Federativas já terem adotado o novo modelo, sua implantação nos demais Estados encontra-se
suspensa, até 30JUN19 (veja cronologia completa em
http://bit.ly/CronologiaPlacasMercosul).
A este respeito, importa esclarecer que a própria Resolução do MERCOSUL estabelece, em seu artigo 7º, que “esta Resolução deverá ser incorporada ao ordenamento jurídico dos Estados Partes”, o que ocorreu por meio de ato normativo infralegal (atualmente, Resolução do Contran n. 729/18 e suas alterações), tendo em vista que o artigo 115 do CTB já estabelece a competência do Poder Executivo em dispor sobre placas de identificação veicular (“o veículo será identificado externamente por meio de placas dianteira e traseira, sendo esta lacrada em sua estrutura, obedecidas as especificações e modelos estabelecidos pelo CONTRAN”).
Ou seja, para se determinar como devem ser as placas dos veículos no Brasil, não há a necessidade de alteração legislativa, mas tão somente mudança em ato normativo próprio do Contran – tanto faz se é para adotar um modelo internacional, ou para se criar regras internas próprias (desde as dimensões e cores, até a criptografia dos dados das placas, adoção de um Sistema de Identificação Automática de Veículos – SINIAV ou uso de código bidimensional – QRCode, questões igualmente regulamentadas pelas normas em vigor).
É claro que, não obstante a desnecessidade de manifestação legislativa acerca do assunto, uma eventual decisão presidencial de não cumprir a Resolução MERCOSUL pode gerar entraves políticos e questionamento internacional, já que, de acordo com o artigo 42 do Protocolo de Ouro Preto (norma de 1994, adicional ao Tratado de Assunção, que instituiu o MERCOSUL), “as normas emanadas dos órgãos do Mercosul previstos no Artigo 2 deste Protocolo terão caráter obrigatório e deverão, quando necessário, ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada país”.
Uso do farol baixo em rodovias
O uso obrigatório de farol baixo em rodovias foi incluído no Código de Trânsito, pela Lei n. 13.290/16, que alterou os seus artigos 40 e 250; portanto, somente o processo legislativo poderá trazer nova regra, não sendo modificável por decisão isolada do Presidente da República.
O assunto, inclusive, já se encontra em discussão no Congresso Nacional, por meio de Projetos de Lei em tramitação, um deles apresentado pelo próprio Presidente, quando era Deputado – trata-se do PL n. 5847/16, em tramitação apensada ao PL n. 5.608/16; já na nova legislatura, idêntica propositura foi apresentada pela Dep Fed Carla Zambelli – PL n. 6/19.
Em conclusão, nem tudo que está sendo divulgado poderá ser posto em prática tão rapidamente e somente pela vontade do Presidente da República, dependendo de análise e decisão por parte do Poder Legislativo federal, o que poderá demorar meses ou, até mesmo, anos.
De qualquer forma, o Conselho Nacional de Trânsito já está estudando todas as pretensões do Presidente, com a finalidade de melhor assessorá-lo e indicar os caminhos necessários para atingir o seu desiderato: para tanto, foram publicadas, no Diário Oficial da União de 01MAR19, as Decisões do Contran n.
01/19 e
03/19, nas quais são elencados todos os assuntos que foram distribuídos às Câmaras Temáticas para estudos prioritários e imediatos.
Vamos torcer que, mercê dos estudos direcionados, sejam adotadas as melhores estratégias para se aprimorar a segurança do trânsito em nosso país!!!
*Julyver Modesto de Araújo é Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP e comentarista do CTB Digital da Perkons.
Fonte: Portal do Trânsito